quinta-feira, 22 de maio de 2014

"Doente ainda tem medo de doutor"

Um dos assuntos mais frequentes em Psicologia tem sido a humanização dos serviços de saúde, esta entrevista de 2006 se mostra atual ao mostrar os desencontros na área médica. Problemas que a Psicologia pode auxiliar na solução e melhorar as relações entre profissionais e profissionais e pacientes. 


REVISTA Isto é  Entrevista 13-09-2006

Cláudio Cohen "Doente ainda tem medo de doutor"
Psiquiatra diz que o médico continua a conversar pouco com o paciente e que os profissionais mais jovens preferem a tecnologia a cuidar das pessoas

Por Cilene Pereira
O psiquiatra e psicanalista Cláudio Cohen, 52 anos, é um dos principais especialistas em bioética do País. Professor da Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo, ele está acostumado a acompanhar e a pesquisar as mudanças de conceitos e verdades que, de tempos em tempos, são feitas na comunidade científica e na sociedade a partir de novas descobertas. Discussões sobre quando começa e quando termina a vida, por exemplo, fazem parte de seu dia-a-dia. Há quatro meses, no entanto, ele se debruça sobre uma questão bem mais específica, voltada para a compreensão de sua própria atividade profissional. Em conjunto com seus colegas Eduardo Massad e Linamara Battistella, também professores, Cohen coordenou uma pesquisa entre seus pares e outros profissionais de saúde para tentar compreender como eles próprios entendiam a profissão, o paciente e o ambiente no qual trabalham. Eles chegaram a conclusões surpreendentes. Algumas delas: a tecnologia hoje atrai muito mais os jovens estudantes de medicina do que a vocação em si, o doente ainda tem muito medo de falar com o médico e os profissionais não conversam entre si. “É a primeira vez que fazemos um trabalho deste gênero. Percebia que essa situação existia, mas ninguém dava muita atenção a esses problemas. Então resolvemos falar disso de outra maneira”, conta. Para obter essas conclusões, foram realizadas entrevistas em profundidade com médicos, professores e diretores de hospitais, além de discussões em grupo com recém-formados, residentes, estudantes no final do curso de medicina e outros profissionais de saúde dos níveis superior e médio. A partir dos achados, o professor espera iniciar uma ampla reflexão entre médicos, faculdades e instituições de saúde para tentar acabar com os gargalos que, no fim, prejudicam os profissionais e – o que é mais perigoso – também os pacientes.

ISTOÉ – A partir da pesquisa, ficou claro que os estudantes e médicos mais novos entram na carreira seduzidos pela tecnologia e não pela vocação?

Cláudio Cohen – Sim. Mais do que a vocação humanista, o que os atrai é a vocação tecnológica. Em geral, as pessoas estão querendo saber mais de pesquisa. E hoje os jovens médicos se interessam muito mais em fazer pesquisa científica do que em tratar pacientes.

ISTOÉ – Isso ocorre em todas as especialidades?
Cohen – Há uma contradição interessante detectada no estudo. Os médicos acham que deveria haver mais clínicos gerais, que eles teriam de manter uma relação mais humanista com o paciente. Mas notamos que, no fundo, o próprio médico acha que o clínico geral é um subproduto da medicina. Eles pensam que, se ele é clínico, é porque não era muito bom em nada. Hoje, o grande médico é

o hiperespecializado. Então, aquilo que o médico considera como o ideal da profissão na verdade ele próprio não valoriza. E nem a sociedade. As pessoas não procuram o clínico. É preciso entender que ele é um especialista na sua área e que se deve começar por ele. 


ISTOÉ – O que foi constatado sobre a relação entre médico e paciente hoje?

Cohen – O paciente tem medo de dizer as coisas. Acaba contando eventuais problemas para a enfermeira – e ela não repassa as informações ao médico.

ISTOÉ – Quem revelou isso?
Cohen – Os enfermeiros, os residentes.

ISTOÉ – Por que ela não conta ao médico o que o paciente está dizendo?

Cohen – Esse é um dos grandes problemas da medicina atual, a chamada interdisciplinaridade. Essa palavra traduz a idéia de que a saúde é a soma do trabalho de vários profissionais, e não fruto do domínio e das ações exclusivas do médico. Isso foi estabelecido pela Organização Mundial da Saúde em 1960. Até então, o conceito de saúde era a ausência de doença. Se esse era o modelo – e quem cuidava de doença era o médico –, quem cuidava da saúde era o médico. A partir de 1960, a saúde passou a ser um bem-estar biológico, psicológico e social, isto é, não apenas a ausência de doença. Com isso, o médico virou mais um dos, e não o profissional responsável pela saúde. É o relacionamento entre as disciplinas, a tal da interdisciplinaridade.

ISTOÉ – Mas não há risco de ocorrerem problemas justamente por falta de comunicação?
Cohen – Sim, mas a novidade é que hoje não são apenas os médicos que estão sendo processados. Enfermeiros e hospitais também. Está se vendo que não é só o médico o responsável.

ISTOÉ – Por que o doente tem medo de se abrir com o médico?
Cohen – Baseado na minha experiência, observo que ele ainda tem uma imagem meio mítica do médico. As pessoas o consideram uma pessoa para a qual só se deve falar as coisas importantes.

ISTOÉ – E que tipo de informação ele deixa de passar? Só problemas, complicações, queixas de dor?
Cohen – Não é só isso. Ele também tem medo de perguntar o efeito colateral do remédio ou de dizer que não gostaria de tomar um medicamento. Ainda sobrevive a relação paternalista na qual o médico sabe tudo e o doente não sabe nada. Então, as pessoas acatam tudo o que o profissional fala. A relação ideal deveria ser baseada em uma autonomia dos dois, para que eles discutam. E o médico vai tentar mostrar ao doente por que uma conduta é melhor do que a outra.

"A relação deveria ser baseada na autonomia. O paciente deve deixar de ser passivo. O que está em jogo é a saúde dele"

"O médico acha que falar com a família é mais difícil do que com o doente. Ela pergunta o que o paciente não questiona"

ISTOÉ – E que conseqüência tem isso para o paciente?
Cohen – Pode haver equívocos. O doente pode ficar com medo de ingerir o remédio, não tomá-lo ou usá-lo na dose errada. Além disso, tem medo de contar que usa terapias complementares. 

lado, pela obrigação de atender tantos pacientes, o médico não tem tanto tempo para ficar respondendo. É mais ou menos como quando vamos ao banco e queremos investir nosso dinheiro. O gerente nos diz para investir nisso ou naquilo. E não questionamos se ele não acha que outra coisa seria melhor.

ISTOÉ – Mas há uma responsabilidade do médico nisso, não? Muitos se queixam de que ele, de maneira geral, não suporta ser questionado ou mesmo discutir uma dúvida do paciente...

Cohen – Nas gerações mais jovens isso está mudando, mas entre os antigos esta postura prevalece. Por outro

ISTOÉ – O sr. acha que o paciente deve sair dessa situação passiva?
Cohen – Não acho, tenho certeza. Ele precisa sair, ser ativo como o médico. Afinal, o que está em jogo é a saúde dele. É o interesse dele próprio. E às vezes ele teme não ser mais atendido por reivindicar seus direitos.

ISTOÉ – Este é um comportamento mais comum entre os pobres, que dependem dos serviços públicos e temem perder a única chance de atendimento, ou também existe entre os mais ricos?
Cohen – É um problema cultural, independe das classes. E é um fenômeno brasileiro. Temos pouca noção dos nossos direitos e deveres. Somos um pouco submissos, inclusive como pacientes.

ISTOÉ – Outra descoberta da pesquisa foi a de que o médico prefere falar com o paciente a conversar com os familiares. Por quê?
Cohen – O médico tem dificuldade de falar com os familiares do doente. Acha que eles são mais difíceis do que o doente. A família acaba fazendo aquelas perguntas que o paciente não faz.

ISTOÉ – Então, mais uma vez, parente é serpente?
Cohen – Sim.
ISTOÉ – Mas os médicos se queixam disso?
Cohen – Dizem que preferem falar com o paciente. E que o melhor seria outro profissional lidar com a família. A psicóloga, a assistente social, dependendo do problema que possa estar associado.
ISTOÉ – Mas de novo voltamos à questão. Ele se incomoda com os familiares, mas, se o paciente se queixa, ele fica incomodado...
ISTOÉ – Mas o sr. não acha que ele tem obrigação de falar com a família?
Cohen – Sim, mas isso é um passo maior, adiante. Primeiro vamos fazê-lo falar com o doente e ensinar o paciente a aprender a decidir por si mesmo.

ISTOÉ – Os médicos sabem que perderam parte do status social?
Cohen – Os mais antigos não perderam o status. Ainda conseguem ter consultório particular, ganhar bem. Os mais jovens é que perceberão isso de forma mais intensa. Provavelmente não terão consultório particular, trabalharão para uma instituição pública ou para um seguro médico, em que a relação médico-paciente estará influenciada por um terceiro. E isso é uma perda de status. Sua autonomia vai para o espaço.
ISTOÉ – E que prejuízo essa perda de autonomia traz para o paciente?
Cohen – Quando ele precisa trabalhar em três, quatro empregos, ele já perdeu autonomia. Já está a serviço dos empregos. E isso vai se refletir na qualidade do atendimento. As vítimas serão o paciente e ele próprio. Mas o profissional ainda não percebeu que também está perdendo. Se tem de trabalhar dessa forma, provavelmente atende muito mais pacientes do que poderia, provavelmente não se atualiza o quanto deveria. Porém, ele ainda acha que é um problema da sociedade e que ela o resolverá. Mas o médico é que terá de dar um basta nisso.

ISTOÉ – O sr. acha que os médicos não perceberam que cabe a eles iniciar essa mudança?
Cohen – Cabe a eles também se responsabilizar por isso. A sociedade os culpa pelo mau atendimento. Eles podem até ter parte nisso porque acabam aceitando, porém é o Estado que paga mal, não dá estrutura de trabalho. Há outras responsabilidades. A questão é começar a dividi-las. Estamos olhando para os médicos e dizendo: vocês têm de repensar sua vida.

ISTOÉ – Eles têm de discutir essa situação?
Cohen – Sim. Realizar uma reflexão em conjunto. Como não têm tempo de atender o paciente, eles pedem mais exames para ter mais segurança. Isso quebra muito a relação com o doente. Outra coisa: eles sabem que a alocação de recursos para a saúde é muito malfeita. Mas não se questionam sobre essas questões.
ISTOÉ – Eles também são passivos?
Cohen – Eles ainda não perceberam a mudança social da função do médico. E também não se imaginam fazendo outra coisa. Isso talvez os assuste e os impeça de exigir mais. Se eu perder isso, o que vou fazer?, podem indagar. Não entendem que essas questões deveriam ser discutidas e revistas com abordagens éticas, com posturas, trocas de valores. No trabalho que fizemos, os médicos disseram gostar da profissão, mas percebemos que entre o gostar e a realidade não há coerência. Basta olhar quantas horas eles trabalham, quantos empregos têm. Se gostassem da profissão como dizem, não a estariam exercendo tão mal.

ISTOÉ – O que esperar do médico no futuro? Ele será mais voltado para a máquina do que para o homem?


Cohen – Sim, mas o médico tem de aprender a lidar com essa questão.


ISTOÉ – O sr. fala de um modelo implantado na melhor faculdade de medicina do País. Mas e no resto?
Cohen - Fico angustiado com tudo isso. Afinal, sou um velho médico. Entrei por uma questão humanista. Considerava este trabalho uma vocação. Acho que, para ajudar a resgatar a missão do médico e lembrá-lo da finalidade básica da medicina, o da assistência ao doente, é preciso haver mais discussão sobre o assunto. Foi o que fizemos aqui na faculdade. Temos disciplinas com conteúdo humanista, psicologia médica, o médico como cidadão, por exemplo.
Cohen – Vamos discutir com todos e trocar idéias sobre esse tema.


Para saber mais:
DE MARCO. M. A (orgs) A face humana da medicina. Casa do Psicologo; São Paulo, 2003.

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